Sir,
Aplaudimos esses esforços pela sua coragem em vez de os condenarmos pelos seus erros. (McShea, 1991, p. 310)
Homologia é um conceito fundamental em sistematização e evolução. Existem diferentes concepções de homologia (Hall, 1994; Müller, 2003; e suas referências). Com o advento da sistemática filogenética de Hennig (1965, 1966), a homologia começou a ser entendida na teoria e prática cladística a partir de uma nova abordagem – ou seja, como sinapomorfia (personagens derivados compartilhados) (ex. Wiley, 1975; Nelson e Platnick, 1981; Patterson, 1982; Rieppel, 1988; de Pinna, 1991; Brower e Schawaroch, 1996; Kitching et al., 1998; Williams, 2004; Schuh e Brower, 2009; Assis e Rieppel, 2011). Embora tal abordagem tenha se tornado um consenso na literatura cladística, um debate recente em Cladística estimulou a revisão da equivalência da homologia com a sinapomorfia (Brower e de Pinna, 2012; Nixon e Carpenter, 2012; Williams e Ebach, 2012).
Nesta carta, revejo brevemente alguns pontos explorados por Brower e de Pinna (2012), e mostro baseados na literatura (Müller, 2003; Love, 2007)-porque sua definição alternativa de homologia não pode acomodar totalmente a homologia e sinapomorfia como sinônimo. Existe uma rica literatura sobre homologia. Assim, procuro esclarecer algumas questões sobre homologia através do desenvolvimento de três questões importantes: (i) O que é a homologia na sistemática e na evolução? (ii) Qual é a relação da homologia com a sinapomorfia, a symplesiomorfia e a homoplasia? (iii) O que significa a relação da homologia com a presença e ausência de partes (entidades, características) em apoio a grupos monofiléticos e classificações filogenéticas?
De acordo com Brower e de Pinna (2012, itálico no original) definição de homologia:
Homologia é a relação entre partes de organismos que fornece evidências de ancestralidade comum. Esta definição expressa a práxis real da inferência filogenética e aplica-se a ambas as camadas de avaliação da homologia, primária e secundária. Aqueles familiarizados com a filogenética são bem-vindos a abreviar nossa definição substituindo ‘sinapomorfia’ por tudo que segue o verbo ‘é’.
Ao aceitar esta substituição, homologia é sinapomorfia, então, sinapomorfia é a relação entre partes de organismos que fornece evidência de ancestralidade comum. Em linha com isto, Brower e de Pinna (2012) criticaram a visão de Nixon e Carpenter (2012) de que a plesiomorfia é homologia:
N&C’s (p. 162) o argumento de que plesiomorfia é homologia baseada na “ocorrência da mesma condição no ancestral comum mais recente” é idêntico no seu raciocínio ao argumento dos taxonomistas evolucionistas de que a parafiomorfia é monofisicamente. Suspeitamos que Hennig teria sentido o mesmo sobre as “homologias” plesiomórficas que sentia sobre os grupos paraplesiomórficos: “eles não têm história independente e, portanto, não possuem nem realidade nem individualidade” (Hennig, 1966, p.146).
Destas considerações, é esclarecedor rever outras frases escritas por Hennig (1965):
Deve ser reconhecido como um princípio de investigação para a prática da sistemática que a concordância em caracteres deve ser interpretada como sinapomorfia desde que não haja motivos para suspeitar que a sua origem seja symplesiomorphy ou convergência (p. 104, itálico acrescentado).
Uma pessoa pode, por exemplo, reconhecer imediatamente que uma espécie de artrópode recente pertence à Myriopoda por possuir uma segmentação homônima do corpo com apêndices articulados em mais de três dos seus segmentos tronco, embora ambos sejam caracteres plesiomorfos e não possam ser usados para justificar a suposição de que a Myriopoda é monofilética. Ambos são caracteres plesiomorfos que também devem ter estado presentes nos ancestrais comuns do Insecta e Myriopoda (p. 112, itálico adicionado).
Qual é a causa que explica a ‘origem’ (Hennig, 1965, p. 104) da symplesiomorphy? Uma vez que a homologia é devida à origem comum (Darwin, 1859), as frases de Hennig (1965) parecem indicar que os traços sinapomórficos e simpáticos são devidos à ancestralidade comum. O ponto crítico, porém, é o de Hennig (1965):
O objectivo da investigação da sistemática filogenética é descobrir os graus apropriados de relação filogenética dentro de um dado grupo de organismos (p. 98, itálico acrescentado).
O método da sistemática filogenética, como parte da ciência biológica cujo objectivo é investigar o grau de relação filogenética entre espécies e exprimi-lo no sistema que concebeu, tem assim a seguinte base que a semelhança morfológica entre espécies não pode ser considerada simplesmente como um critério de relação filogenética, mas que este conceito deve ser dividido nos conceitos de symplesiomorphy, convergence, e synapomorphy, e que apenas a última categoria de semelhança pode ser usada para estabelecer estados de relação (p. 104).
Embora a symplesiomorphy e a synapomorphy sejam expressões de homologia, apenas a última categoria nomeada de semelhança, relativa a um nível hierárquico apropriado, constitui evidência de monophyly sensuHennig (1965, 1966). De fato, Schuh e Brower (2009) e Rieppel (2010) discutiram como Willi Hennig refinou nossa compreensão dos grupos monofiléticos em comparação com as concepções anteriores. Além disso, Hennig (1965, 1966) nos mostrou diferentes formas (categorias de semelhança) pelas quais a homologia pode ser expressa através do sistema filogenético. Não foi apenas uma sinonímia da homologia com sinapomorfia, como muitos cladistas têm endossado. Mais importante, isto não implica que ao dizer que “plesiomorfia e sinapomorfia são tipos de homologia” (Nixon e Carpenter, 2012, p. 162) vamos classificar grupos parafiléticos. Eu percebo que a Sistemática Filogenética de Willi Hennig acomoda sinapomorfos, simplesiomorfos e homoplasias (convergências) dentro de uma abordagem realista. Em outras palavras, existe uma explicação causal para a sua origem (por exemplo, Hall, 2007; Escócia, 2011). No entanto, grupos parafiléticos e polifiléticos não são realisticamente aceitáveis (Hennig, 1965, 1966), mesmo que estes grupos sejam definidos por simplesiomorfos e homoplasias, respectivamente. Ironicamente, existe uma clara distinção entre a evolução dos caracteres e a classificação dos grupos.
Retornar ao argumento de Brower e de Pinna (2012) de que homologia (uma relação entre partes de organismos) é sinapomorfia. O que dizem sobre a perda de partes (entidades, características), classicamente interpretadas como sinapomorfos – por exemplo, a perda de membros em serpentes (tetrápodes), a perda do câmbio vascular em monocotiledôneas (lignófitas), e assim por diante? Como bem observado por Müller (2003, p. 54, itálico no original):
a sua ausência, pode servir como um carácter partilhado, derivado (taxonómico) – uma sinapomorfia. Além disso, um carácter taxonómico não é necessariamente o mesmo que um carácter morfológico. Todos os homólogos são sinapomórficos, mas não o contrário. A ausência de um elemento anatômico, por exemplo, pode ser uma sinapomorfia taxonômica, mas não uma homologia, pois os homólogos são partes anatômicas positivas. Portanto, sinapomorfia e homologia não devem ser consideradas como sinônimos.
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De acordo, ‘omologia é uma relação de equivalência entre entidades (não a ausência de entidades) que correspondem umas às outras’ (Love, 2007, p.700, itálico no original). Em linha com isto, podemos agora ver como Brower e de Pinna (2012, itálico acrescentado) entendem a questão da ausência e presença de partes com relação à simplesiomorfia e sinapomorfia.
Embora algumas dessas ausências possam representar apomorfias, muitas delas são simplesiomorfias. Como notado por Nelson (1978, p. 340), “ausência de um personagem não é um personagem”, mas ainda pode ser uma symplesiomorphy. Consideramos as ausências complementares como homólogos primários (estados de caráter epistemologicamente idênticos), mas não como homólogos secundários. Claramente, a ausência primitiva é meramente um lugar operacional para aqueles taxa que não possuem característica derivada observável, e como tal não pode ser “compartilhada devido à ancestralidade comum”.
Desta forma, Brower e de Pinna (2012) fornecem uma interpretação das perdas como apomorfos e ausências como plesiomorfos, e assim cometem um erro categórico sinonimizando homologia com sinapomorfia. Na verdade, como pode haver uma relação entre coisas (homologias como partes ou características) que não existem (sinapomorfos como perdas de partes ou características)? O mesmo se aplica à symplesiomorfia como ausência, uma vez que não está relacionada a nenhum processo causal. Desta forma, um ponto interessante merece atenção à luz da evo-devo, e da integração entre padrão e processo. Com respeito à perda fenotípica, o caráter morfológico é perdido, mas os mecanismos genético-desenvolvimentais codificados para esse caráter podem ser mantidos (Hall, 2007). Nesta perspectiva, podemos dizer que não existe relação de homologia a nível fenotípico, porque as entidades homólogas se perderam, mas ao mesmo tempo podemos dizer que existe relação de homologia a nível dos restantes mecanismos genético-desenvolvimentais. Uma vez conservados estes genes e mecanismos reguladores, podem ser gerados caracteres morfológicos convergentes ao longo do espaço-tempo através da ‘homologia profunda’ (Hall, 2007; Shubin et al., 2009; Escócia, 2011).
Finalmente, a razão de criticar parte da visão de Brower e de Pinna (2012) sobre a homologia não é para diminuir a mesma. Pelo contrário, à luz deste debate esclarecedor em Cladística, convido os que estão familiarizados com a filogenética a reflectir sobre as seguintes respostas a estas três perguntas iniciais.
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Na sistemática, a homologia é uma relação entre as mesmas partes ou características de dois ou mais organismos sob cada variedade de forma e função (Owen, 1843). Critérios empíricos diferentes e complementares são usados para identificar se as partes ou características são ou não são as mesmas. Estes incluem: identidade topográfica, conectividade, composição, genética, ontogenia e conjunção (Patterson, 1982; Rieppel, 1988; Hall, 2007; Shubin et al., 2009; Escócia, 2011). Em evolução, a relação da homologia é gerada causalmente e inteligivelmente explicada pela descendência com ou sem modificação (Darwin, 1859).
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Na sistemática filogenética, sinapomorfia, symplesiomorphy e homoplasy são expressões de homologia ou categorias de semelhança em níveis distintos e apropriados de universalidade filogenética. Em relação à agenda filogenética e aos benefícios da pesquisa sistemática-comparativa, a sinapomorfia é o marcador qualitativoepistêmico para Hennig monofisicamente sensu (Assis e Rieppel, 2011). Symplesiomorphy é sinapomorfia a um nível menos inclusivo, que não é útil para a classificação filogenética (Patterson, 1982; de Pinna, 1991; Schuh e Brower, 2009). A sinapsiomorfia implica parafisicamente, de modo que algumas, não todas, espécies descendentes herdaram uma condição particular (plesiomórfica) de um ancestral comum delas. A homoplasia implica a polifilia – ou seja, a origem independente (não-homologia) de uma condição semelhante em dois ou mais grupos – mas é sinapomorfia a um nível filogenético mais restrito (comparar Hall, 2007; Escócia, 2011; Nixon e Carpenter, 2012). A homologia fiscal constitui evidência de monofilia (Patterson, 1982), enquanto a homologia transformacional envolve séries evolutivas de homólogos plesiomórficos a homólogos apomórficos.
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No caso tanto da ausência como da perda de partes ou características, a sinapomorfia, a symplesiomorfia e a homoplasia não podem ser tratadas como homologia fenotípica (Müller, 2003; Love, 2007). Portanto, homologia táxica (Patterson, 1982) e homologia secundária (de Pinna, 1991) não são totalmente equivalentes à sinapomorfia. Neste mesmo sentido, a relação de homólogos transformadores – ou seja, um entre homólogos diferentes mas correspondentes – não deve ser empregada para declarações de caráter ‘ausente/presente’ (Sereno, 2007). Como já foi dito anteriormente, a simplesiomorfia como ausência não tem sentido causal-relacional. Ela se refere a “algo” que nunca existiu na natureza e, portanto, deve ser abandonada dos cenários históricos. Em contraste, sinapomorfia, symplesiomorphy e homoplasia como perda têm sentido causal-relacional, pois envolvem a ligação entre padrões e processos evolutivos (Hall, 2007; Escócia, 2011). A sinapomorfia, no sentido de perda de partes ou características – ou seja, a perda da relação de homo- é também evidência de monofonia.
O trabalho de Alan Love inspirou-me a escrever esta carta; por isso, os meus agradecimentos a ele. Minha sincera gratidão vai para Leonardo Borges, Rafaela Falaschi, Alan Love, Olivier Rieppel e o Editor Chefe, Dennis Stevenson, por seus comentários sobre um rascunho inicial desta carta; e Renê Carneiro, Ana Fernandes, Carolina Oliveira, Morgana Rabelo, Aline Ramalho, Rafaella Ribeiro e Lucimara Souza por nossas discussões frutíferas ao longo do curso Homologia: Sistemática e Evolução na Universidade Federal de Minas Gerais (bolsa nº FAPESP, 10/08382-1).