DISCUSSÃO
Desde o primeiro relato de FMTS descrito por Kleihauer 14 os casos relatados na literatura aumentaram significativamente dada a relevância clínica desta patologia. Os fatores predisponentes que têm sido postulados incluem pré-eclâmpsia15, procedimentos diagnósticos invasivos como amniocentese, cordocentese e biópsia de vilosidades coriônicas 16,17, traumatismo abdominal 18-20, tumores placentários 15 e manobras como a versão cefálica externa 21,22. Entretanto, mais de 80% dos casos parecem ser de etiologia incerta, o que dificulta o diagnóstico e a intervenção oportunos.
Não houve fatores de risco nos dois casos clínicos aqui relatados. Ambas as mães tiveram gestações fisiológicas bem controladas e o diagnóstico precoce de transfusão feto-materna não foi possível até que a anemia fetal fosse associada a manifestações clínicas de comprometimento hipóxico. De fato, em várias publicações o sinal clínico mais frequentemente relatado (>35%) é diminuído ou ausente 11,23,
Na literatura nacional publicada, vale a pena mencionar o trabalho publicado por Pérez-Moneo 24, no qual relatam um caso de STFM que apresenta um fator de risco identificável, como a versão externa. Isto nos leva a pensar que, diante de procedimentos obstétricos invasivos, é importante manter um alto grau de suspeita para detectar esta patologia.
Em relação ao diagnóstico desta patologia, duas ferramentas são utilizadas: a ultra-sonografia doppler 23,25 e o laboratório 26,27. A Doppler ultra-sonografia é um método não invasivo capaz de detectar in utero as manifestações fetais da anemia secundária ao STFM. Utiliza a medida do pico sistólico da artéria cerebral média, um valor que, segundo tabelas padronizadas, permite estimar a magnitude da anemia. Teoricamente, um pico sistólico de MCA maior que 1,5 MoM (múltiplos da mediana) implica em anemia fetal significativa. É importante mencionar que esta técnica está relacionada à experiência do operador e tem uma taxa de falso positivo de aproximadamente 12% 23. No caso clínico 2, o pico sistólico foi de 115 cm/s, valor superior a 1,5 MoM, consistente com anemia fetal grave.
A nível laboratorial, várias técnicas são utilizadas. Estes podem ser classificados como testes qualitativos, teste de Rosette e testes quantitativos, como o teste Kleihauer-Betke e a citometria de fluxo. O Teste de Roseta é um teste observacional que detecta, pela adição de imunoglobulina anti-D a uma amostra de sangue materno, a presença de células de RH(+) fetal circulando na corrente sanguínea materna RH(-). Os anticorpos aglutinam os eritrócitos RH(+) fetais, que estão dispostos em pequenos grupos em forma de roseta, um aspecto microscópico que dá o nome ao teste. A sua principal limitação é precisamente a necessidade de incompatibilidade do grupo materno-fetal para fazer o diagnóstico. 28.
O teste Kleihauer Betke, por outro lado, é um teste quantitativo que procura a presença de hemoglobina F (fetal) na corrente sanguínea materna. O teste é baseado na resistência fisiológica deste tipo de hemoglobina, presente no interior do eritrócito fetal, à diluição em meio ácido. A hemoglobina materna carece desta resistência à diluição ácida, de modo que quando o sangue materno com glóbulos vermelhos fetais (produto de uma suposta transfusão feto-materna) é exposto ao meio ácido, apenas a hemoglobina fetal permanecerá ilesa. Isso permite ao operador identificar a proporção de eritrócitos fetais na corrente sanguínea materna, estimando através de fórmulas matemáticas complexas a quantidade de sangue fetal (em mililitros) transfundido.12,17,29,30. A principal limitação do método reside na sua complexidade. Requer manuseamento por um operador especializado, e observação microscópica directa enquanto se conta manualmente a proporção de eritrócitos com hemoglobina F campo a campo. Em ambos os casos apresentados, o volume de sangue transfundido é superior a 30 ml, valor proposto como suficiente para considerar a transfusão feto-materna como maciça. O caso número 1 apresentou uma hemorragia estimada em aproximadamente 300 ml, o que provavelmente explica o resultado fetal observado.
Citometria de fluxo, por outro lado, é uma alternativa automática, não dependente do operador, que permite quantificar a quantidade de sangue transfundido por meio de um mecanismo de fluorescência. É um teste rápido, que permitiria fazer um diagnóstico em situações urgentes. Sua desvantagem, porém, reside na disponibilidade limitada deste recurso na prática clínica rotineira. 28,
Após o diagnóstico de FMTS ter sido estabelecido, o médico deve basear seu comportamento em múltiplas variáveis, incluindo idade gestacional, estado fetal, disponibilidade de uma unidade neonatal apropriada, entre outras. Sem dúvida, a interrupção da gravidez é a indicação se a gravidez estiver próxima do termo 9. Quando a gravidez, por outro lado, está longe do termo e há comprometimento hemodinâmico fetal, a melhor ferramenta terapêutica é a transfusão de sangue para o feto, um procedimento que não está livre de complicações.